sábado, 14 de novembro de 2009

Morreu um Indivíduo


Milhares de mortos num terramoto na Ásia são uma notícia longínqua, quantas vezes sem imagens televisivas. Um acidente rodoviário em qualquer ponto do 1ºMundo tem lugar em todos os noticiários. A morte de uma estrela rock interrompe programações televisivas e tem destaque em tudo o que é media durante semanas. A vida humana tem cotações diferentes. Já se sabia. A morte também. Quando a morte nos é mais próxima, 1 é mais que 10.000. Isto é evidente quando se perde alguém que nos é querido, seja familiar ou amigo. Também acontece quando desaparece alguém que nos habituámos a ver e a admirar. É este o caso da morte de jogadores de futebol. Pelo menos, daqueles que fomos directa ou indirectamente acompanhando. Por isso é que os jogadores de uma equipa amadora colombiana que foram encontrados sem vida junto da fronteira entre a Colômbia e a Venezuela tiveram tanto impacto como as vítimas de um atentado terrorista onde quer que seja.

Quando a notícia é da morte de alguém de quem conhecemos o rosto, a reacção é completamente diferente. Trata-se de um indíviduo e não de um número. Associar um rosto a um facto, seja ele qual fôr, reforça o facto. Quando esse rosto é de alguém que os habituámos a respeitar, o reforço é maior ainda. Quando serenidade, concentração, elasticidade e a dedicação ao jogo se juntam a qualidades humanas inegáveis que o levavam a participar em actividades de índole social ou comunitária, a morte tem um peso tremendo. Foi por tudo isto que derramei lágrimas quando me vi perante a morte de Robert Enke. As lágrimas não derramadas perante uma tragédia sem nomes ou sem rostos.

Porque Enke tinha rosto. Culto e empenhado em diversas áreas, estava muito longe do estereótipo do jogador de futebol oco. Porque foi um excelente guarda-redes, profissão que abraçava apaixonadamente. Porque a sua vida privada estava já marcada pela tragédia da morte de uma filha. Porque por este ou aquele motivo, a sua carreira acabou por nunca assumir o plano de destaque que o seu valor mereceria. Porque o desespero que conduz ao suicídio é algo de uma delicadeza imensa, que só não toca quem nunca experimentou desespero nas suas vidas. Há algumas horas atrás, a caminho das redes de uma baliza açoreana, o ex-colega Moreira ter-se-á lembrado do amigo desaparecido. Eu lembrei-me.

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